Dentro de mim existe um lugar onde vivo inteiramente só
e é lá que se renovam as nascentes que nunca secam.
P.Buch

17 de agosto de 2013

Infância

E foi em 1964 que eu entrei no Grupo Escolar Felipe Cantúsio, lá no Parque Industrial. A escola havia sido inaugurada um ano antes. Era novinha e grande, enorme mesmo. As salas de aulas ficavam em torno de um jardim lindo. A rua era de terra, mas a frente da escola era aberta e sem pichação alguma, nem mesmo a tal de “grafite” que eu particularmente não admiro.
 
A classe número 4 foi onde fiz o primeiro ano e eu amava a professora, Dona Helenice, que me ensinou a ler e escrever na Cartilha Caminho Suave. Gratidão profunda a ela.
 
Eu tinha um caderno não espiral, encapado com plástico xadrezinho de amarelo, um lápis preto, uma borracha, uma régua de 20 cm e um apontador, tudo guardado organizadamente no estojo de madeira. Tudo isso ia na minha bolsa, da qual sempre me lembro ao sentir o cheiro de couro. A lancheira também era de couro e nela ia sempre banana e pão que, às vezes, eu dava para as meninas mais pobres que não tinham nem mesmo calçados.
 
Meu uniforme, a bolsa, a lancheira, tudo isso durou 4 anos. Minha mãe só ia descendo a barra da saia à medida que eu crescia. No recreio brincávamos de roda. Eu sofria quando demorava ser escolhida para ir pro centro da roda e, depois, sofria quando estava lá dentro, coisas de criança tímida.
 
Todos os dias, ao chegar da escola eu fazia meu “para casa” sem mesmo tirar o uniforme, porque queria ficar livre das “obrigações” para poder brincar. Me lembro de brincar de ser professora e imitava tudo que elas diziam. Depois de almoçar, corria para a casa da Maria Preta, de quem já falei neste blog, e lá ia ouvir suas histórias que tanto me fascinavam, e contava a ela meu dia na escola. Mostrava meu caderninho e ela sem saber ler uma letra sequer, admirava e me elogiava.
 
Depois eu voltava para casa e brincava no quintal com sabugos de milhos, latinhas, terra, louzinha que tinha ganhado de minha irmã Nadir com um punhado de giz coloridos. Brinquedos não tinha e por isso criava os meus próprios. Adorava escrever em meus cadernos e pintar os carimbos que as professoras colocavam no cantinho de cada folha. Lápis de cor também não tinha. Era emprestado de algumas outras alunas. Mas a escola era o meu mundo novo que se abria. E eu amava. Nas férias, ficava contando os dias para o retorno.
 
E assim corriam os dias longos, com árvores, parreiras, um pé de mexerica que ouvia todas as minhas conversas com meus amigos imaginários e que via o meu olhar pro alto fazendo histórias das nuvens que teimavam em desenhar no céu.
 
Hoje me pus a pensar sobre isso. Talvez por notar que algumas crianças não brincam mais, não têm brinquedos de criança. Têm como objeto de desejo os Ipads, celulares de últimas gerações. Também não conheço nenhuma criança hoje que goste da escola. Incrível. Os pais têm medo que eles se sintam diferentes dos outros. Mas até que ser diferente pode ser bom.
 
Se faltou algo na minha infância, ou não, não importa. Importa que eu sou o que sou hoje, catando todos esses ingredientes, misturando e fazendo uma grande metáfora para que meus olhos continuem vendo a vida com a mesma beleza do quintal verde de minha casa com céu azul. Como diz Paulinho da Viola, “não vivo de passado, mas o passado vive em mim.
 
Talvez isso também acontecerá com essas crianças que não têm acesso a quintais, sabugos de milhos e amor a professoras.
 

4 de agosto de 2013

Soltar

Andar de domingo de manhã na Lagoa do Taquaral é um momento tão agradável que dispensa qualquer raciocínio interpretativo. É simplesmente agradável e ponto. Como diz meu poeta favorito, Fernando Pessoa, na roupagem de Alberto Caeiro: 

"O mundo não se fez para pensarmos nele
Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo...
Pensar é estar doente dos olhos.
Pensar em nada é ter a alma própria e inteira.
Pensar em nada.   É viver intimamente."  

 Mas hoje andando por lá vi uma paisagem diferente. As folhas caíam das árvores lentamente se balançando e colorindo o chão. Parecia um outono europeu quente. E eu andando e pensando em eventos desafiadores de minha vida atual. Pensava enquanto caminhava em ritmo acelerado e quanto mais acelerava, mais os pensamentos vinham e me davam uma sensação de limitação.

Estava consciente dessa sensação e não sabia como me desfazer dela. Tentei pensar em outras coisas, mas os outros sentimentos teimavam em esquentar minha cabeça. Que droga, estava cansada daquilo e não sabia o que fazer para parar. Acelerei ainda mais meus passos. E as folhas das árvores se soltando, largando-se simplesmente. Parei, fotografei, abri os braços para ser banhada por elas, respirei. A árvore não fazia nada para se livrar das folhas. Elas simplesmente caíam num ritmo silencioso e de paz. A árvore simplesmente estava vivendo o que ela tinha para viver, recebendo os nutrientes da terra e do sol e se permitindo novas folhas, novas cores. Ela não ficava focando e se questionando porque é que as outras folhas estavam caindo. Ela simplesmente existia e se deixava existir. Era tudo tão natural que fosse assim.
 
 
Assim, por alguns momentos ali parada, pude ver a lição que ela estava me dando. Não adiantava nenhuma força minha para largar o que não tinha mais vida nos meus pensamentos e sentimentos. Eu não precisava fazer nenhum esforço, somente permitir que novos pensamentos mais luminosos chegassem. Respirei fundo. Por um segundo a sensação de limitação desapareceu. Que profundos são esses momentos em que o medo desaparece, a negatividade desaparece, a dor física desaparece e então nos damos conta de que somos pertencentes a todo esse universo que a todo tempo se interage com nós mesmos.

 
Depois encontrei minha amiga Eliana que estava correndo e ela me disse: “Vamos, vamos...” e eu:  “Hum, acho que não consigo correr...”   E ela: “Corre um pouco e anda um pouco e assim você vai conseguindo correr mais. Tchau tchau, bom te ver....” E lá fui eu pensando que, na verdade, podia sim fazer isso. Que a limitação são só nossos pensamentos mesmo. Respirei, corri um pouco, andei um pouco e foi muito bom.


 
E há alguns dias, minha amiga Cristina me deu uma oferenda muito peculiar. É uma pequena boneca maia, com não mais que 5 cm de altura, feita à mão, vestida com trajes típicos, que se chama “Worry People”, nome dado pelos próprios maias. Junto com a boneca, vem um cartão explicando que, segundo a lenda, quando os maias tinham problemas, contavam para as “Worry People”. Então, à noite, eles colocavam-na debaixo do travesseiro e, quando acordavam, as “Worry People” tinham levados todos problemas embora.
 
 
 
 
Então, muita coisa a aprender com as "Worry People", as folhas e os pensamentos que temos que simplesmente que largar, soltar.