Dentro de mim existe um lugar onde vivo inteiramente só
e é lá que se renovam as nascentes que nunca secam.
P.Buch

26 de julho de 2014

TOTNES

Eu estava em Totnes, uma cidade no sul da Inglaterra, assistindo a uma palestra quando minha amiga Mirella me convidou para ir no Schumacher College, onde havia uma sala com uma tv e algumas pessoas estavam assistindo ao jogo de futebol entre Brasil e Alemanha. Eu que nem ligo para futebol, aceitei e lá fomos nós, não sem antes passar pelos maravilhosos jardins da escola.




Quando entramos na sala ouvi um “goooool” que vinha da televisão. E eu, apressada, disse a Mirella que seria do Brasil. Mas não era. Era o quinto gol da Alemanha. Fiquei muito surpresa e comecei a prestar atenção ao jogo. Na sala onde eu estava havia mais pessoas de outras nacionalidades e a cada gol, diziam: “Oh, no, I’m sorry!”  E eu alí de boca aberta ouvindo o narrador da televisão dizendo: “It is amazing, Brazilian gave up” (Inacreditável, os brasileiros desistiram).  

Ele falou tantas vezes “os brasileiros desistiram” que aquilo começou a me incomodar e a doer no peito. Ele não dizia que os “jogadores desistiram”, eles diziam “os brasileiros desistiram”. Aquilo foi doendo, doendo e percebi, naquele sétimo gol que eu também havia desistido de meu país.

Para me proteger fui me fechando com desmandos de políticos e policiais, impunidades, corrupção, violência de todos os níveis, falta de delicadeza entre pessoas, radicalidades políticas com discursos velhos e ineficientes, desgoverno, confusão de valores entre as pessoas, a insensibilidade diante da desigualdade, a ignorância diante da natureza etc. etc. etc.

Como que as pessoas não estão gritando de indignação com tudo isso? Como que nós brasileiros nos separamos em nossas pequenas ideias egoicas colocando o país numa roleta russa? Como as pessoas não estão gritando ao ver nossa floresta sendo devastada, nossas crianças sem educação, com o número de pessoas sendo mortas por dia que ultrapassa os mortos de países em guerra? Como não estamos gritando pelo nosso direito de poder andar nas ruas sem medo? Como assim escolher entre a passividade da manada ou o quebra-quebra da coisa pública? Como assim escolher entre a greve de médicos e professores e motoristas que não são valorizados neste país e alunos sem aulas, doentes morrendo por falta de atendimento e população trabalhadora indo para casa a pé? Recuso-me a escolher um desses lados. Tudo tão ineficiente, tão improdutivo, tão velho.

E foi assim que desisti.  E claro, alí naquele momento, alguém repetia e repetia tanto aquela frase – “os brasileiros desistiram” -  que a dor da separação com o meu próprio país, que eu nem sabia que existia, veio à tona.

No dia seguinte, acordei ainda com esse sentimento.  Andei pelos caminhos verdes que levam da casa da Mirella e Tilly (amigas queridas que me hospedaram) ao centro de Totnes.

No caminho, como não tem acostamento, eu parava quando um carro passava ou ele parava para que a gente se organizasse para ver quem passaria primeiro. Os motoristas acenavam com a mão como que agradecendo e eu fazia o mesmo. Sentia o cheiro do mato e o relaxamento no meu corpo, nos meus olhos, nos meus ouvidos. Me senti abençoada por estar ali naquele lugar lindo e pensava onde é que no meu país eu poderia andar daquela maneira, com tamanha tranquilidade por horas e não sentir medo? 





Durante o dia fiquei no centrinho de Totnes.


Entrei em algumas lojinhas bem bonitinhas e, quando vi os preços, achei tão barato que fui logo conversar com a atendente que me explicou que alí, entre as lojas normais, havia 12 lojas que vendiam produtos de segunda mão. Entendi então. Continuei perguntando como funcionava e ela disse que a população fazia a doação e tudo era vendido ali e o dinheiro ia para alguma instituição de caridade favorecendo os animais, ou pesquisa para câncer, ou idosos etc.  E ela ali oferecia um dia de voluntariado para essa instituição. No ato da doação a pessoa preenche um formulário onde ela e a loja serão beneficiadas na hora do imposto de renda.  Fiquei encantada com a iniciativa e mudei meu conceito ou “preconceito” aos brechós que temos aqui no Brasil.

Depois descobri que a cidade tem muitos projetos legais para o bem estar das pessoas.
Tem um ônibus, o "Bob, the Bus" que leva as pessoas mais velhas ou com alguma deficiência - e eu vi o motorista parar, descer do ônibus, ajudar o velhinho sair ou ajudar um cadeirante subir no ônibus. Nossa, é muito tocante ver isso.  


Vi um “green supermarket”, um supermercado só de produtos orgânicos. Entrei, fiz umas comprinhas, conversei com a caixa.

Vi pessoas se cumprimentando, ouvi um senhor me perguntar se eu queria ajuda quando eu olhava um mapa e, mais tarde, ao encontrar com ele do outro lado da rua, me cumprimentou e perguntou se estava tudo bem. Almocei comida vegetariana, claro, berinjela, claro, num restaurante muito simpático.





Descansei perto do rio.....











 e visitei um castelo.
Depois voltei pela mesma estradinha verde sem acostamento, uns 30 minutos para chegar à casa de Mirella e Tilley, já que sou meio lenta para andar, principalmente em lugares bonitos e perfumados - distraio com flores, cores, pedras, árvores e pássaros. A Tilley me indicou livros e preparou um jantar delicioso com tanto carinho que também me tocou muito. Contaram sobre os vários projetos da cidade e tudo que fazem por lá. Fiquei muito feliz de saber que é possível fazer mudanças reais desde que não seja a partir de velhos paradigmas.

À noite fui a uma palestra de Satish Kumar – fundador da Schumacher College. Tinha fila, mas o lugar era tão bonito que nem me preocupei com a fila. 
 Ele falou sobre seu livro, que já estou devorando, chamado “Soil. Soul. Society”  (Solo. Alma. Sociedade) mostrando que essas três palavras são uma maneira de dizer que nós somos todos ligados, interconectados e interdependente. E que só podemos estar à vontade com toda a humanidade através do cuidado com o solo, que é a fonte de toda vida, literal e metaforicamente, já que a vida vem da mãe terra e retorna a ela. O que está fora de meu corpo é solo, o que está dentro de meu corpo é a alma. Assim como eu cuido do solo para crescer o alimento para meu corpo, eu também cuido da minha alma cultivando amor, compaixão, beleza e unidade para perceber a harmonia dentro e fora de mim. Quando estou à vontade dentro de mim, estou à vontade fora de mim e estou à vontade com toda a humanidade. Ao cuidar do solo eu sou membro da comunidade do  Planeta Terra e ao cuidar da sociedade eu sou membro da comunidade humana. Enfim, nosso sofrimento e nossa dor acontece quando nos separamos do solo, da alma e da sociedade.

E lá ele ficou falando palavras que mais pareciam bênçãos sendo lançadas na minha dor reconhecida no dia anterior. Ainda assim, no final, quando ele abriu para perguntas, precisei perguntar: “Satish, sou brasileira e meu país tem muitos e profundos problemas. Sinto a dor da separação com o meu país. Que dicas você me daria para eu não sentir mais isso?”  E ele: “Há muitos brasileiros estudando aqui no Schumacher College e estão levando suas experiências para o Brasil. Sabe, a Inglaterra tem problemas, a Índia tem problemas, Totnes tem problemas, Schumacher College tem problemas. Todo mundo tem problemas. Temos que abraçar os problemas. Não olhe os problemas como problemas, olhe como oportunidades. Conecte-se com grupos que já estejam desenvolvendo algo baseado nesse tripé “soil-soul-society”. Quando nos conectamos a outras pessoas que estão pensando assim, isso nos alimenta.  A dor que você diz sentir é a dor da desconexão”. E reforçou: “Não olhe para os problemas como problemas, olhe para eles como oportunidades. E você e todos nós, seres humanos, temos infinitas oportunidades dentro de nós”.

Nem preciso dizer que as lágrimas já desciam de meus olhos enquando a dor era dissipada. Senti uma leveza e um sentimento de compaixão começou a despontar com relação ao meu país. Nem sei por onde começar, mas brotou em mim um desejo de começar a fazer alguma coisa que não seja ligada aos velhos paradigmas usados desde que o mundo é mundo que não servem mais para nada, mas para algo novo onde não haja desconexão, destruição ou violência. 

Voltarei ainda a falar desse livro fantástico que estou lendo num próximo post.

20 de julho de 2014

FINDHORN

Quando fui morar na comunidade de Nazaré, hoje Uniluz, em 1989, soube que ela havia sido inspirada em uma outra comunidade que fica no norte da Escócia. E foi ali que conheci o Jogo da Transformação que também foi criado nessa comunidade escocesa que se chama Findhorn. E, desde então, tinha vontade de conhecer esse lugar. E somente agora pude realizar esse desejo e creio mesmo que esse foi o momento ideal depois de ter vivido outras experiências.  E lá fui eu fazer o “experience week” em Findhorn,  um programa para pessoas que estão indo pela primeira vez.

Chegar até lá parece até um ritual. Peguei avião de Londres a Inverness, uma cidadedezinha bem bonitinha e depois fui de ônibus até Forres, uma cidadezinha menor ainda. Já no ônibus, uma senhorinha desceu 2 pontos de ônibus antes só para me mostrar onde era o ponto de táxi.

A Sra. Margareth me disse que tinha viajado bastante e que tinha recebido muita ajuda de pessoas que ela nunca mais tinha visto e que essas ajudas foram muito importantes.  Foi, para mim, um dos primeiros anjos tirando obstáculos para chegar até lá.  Fui então deixando aeroportos, cidades grandes, multidões de pessoas, wifi, e entrando num mundo tão silencioso, tão orgânico e equilibrado, tão verde e tão gentil que me comovia a todo momento.

Findhorn é uma comunidade espiritual, uma ecovila e um centro internacional para educação holística. A abordagem da sustentabilidade integra quatro aspectos: espiritual, social, meio ambiente e econômico. Lida não só com a sustentabilidade externa como com a construção de casas ecológicas, tratamento de esgoto de forma ecológica e energia renovável, mas também foca a vida interna dos seres humanos, dando às pessoas oportunidades de fazer parte e praticar a vivência em comunidade através das atividades práticas diárias da própria comunidade que nos proporciona fazer a mesma coisa que fazemos no dia a dia, mas com uma outra atitude, com um novo olhar muito mais abrangente onde percebemos que uma simples atividade que realizamos faz parte de um todo maior o qual pertencemos.



Bom, o programa era bem equilibrado e tive oportunidade de estar num grupo de 15 pessoas onde pude trabalhar no jardim, na preparação dos lanches nos intervalos das atividades entre outras atividades e conversar com pessoas moradoras de lá ou que estavam, como eu, passando um tempo na comunidade.


O lugar é de muita paz e beleza. Em cada lugar que eu olhava via que ali alguém tinha passado e deixado algo bom, ou porque limpou, ordenou, ou porque escreveu algo, enfim, dava para sentir uma amorosidade em tudo que se via. Aliás, amorosidade é mesmo a tônica de qualquer trabalho em Findhorn.  E é isso que desarma as pessoas, que as integra e que as transforma.




A comida é algo muito inspirador também. Eu comia e me sentia abençoada de tanta coisa gostosa, bonita, e que tinha sido feito com tanta dedicação pelos outros participantes, e meu corpo agradecia.



Internamente trabalhei aspectos meus e dores escondidas até então, que eram desconhecidas por mim e alí foram dissolvidas. Um dia estava trabalhando num projeto no jardim, onde o grupo iria tirar matinhos. Estava frio, muito frio e eu me agasalhei como pude e comecei o trabalho em silêncio. Percebi que não era tão difícil assim. Era só dar um mexidinha e o matinho saia com uma certa facilidade. E alí tinha minhocas e outros bichinhos. Fiquei lá por 3 horas fazendo isso junto com o grupo e, à certa altura, me vem o insight de que também a gente não precisa carregar coisas que não precisamos, e é só dar uma mexidinha que as dores saem e, embaixo dessas coisas que não precisamos mais, há vida, vida nova. Fiquei tocada com essa percepção de que, muitas vezes, a gente carrega coisas que já estão quase que resolvidas, mas ainda colocamos um certo peso nelas simplesmente porque não atualizamos nossos sentimentos, não revolvemos a terra.





Outra coisa que vivenciei bastante foi o escutar e ser escutada. Sem preconceito, sem julgamento, sendo acolhida e acolhendo o outro da maneira como o outro era.  Assim é que se resolvem os problemas. Ao invés de reagir como de costume, ouvimos e acolhemos o outro, trabalhando a compaixão. Quando essa compaixão está trabalhada, o outro tem a possibilidade de mudar. Sem isso, a situação é sempre a mesma, não muda nada, é o jeito velho de reagir que não é produtivo. Não mudamos ninguém, mas temos a solução que é trabalhar em nós mesmos o acolhimento do outro e a compaixão.


Conectar comigo, conectar com a natureza, com o outro pode ser compreendido quando eu olho para a separação e percebo o contraste. Separação é quando não nos sentimos parte, quando nos fechamos para o outro, quando julgamos, quando não aceitamos as coisas como elas são. Conexão então é o oposto.  Daí, para nos conectarmos com nós mesmos, com tudo que está em volta, muitas vezes precisamos silenciar internamente e olhar para o que sentimos, para o que estamos aprendendo. Isso é uma prática e a meditação que fazemos ajuda muito. Findhorn tem vários horários para meditar e você pode escolher o melhor horário. Os Santuários onde se pratica a meditação são repletos de paz e de beleza.





Um dia, andando pelos jardins, me perdi...e virei num outro caminho e... sim,  me perdi e por ter me perdido, me deparei com a Dorothy Maclean de 94 anos (escritora e amiga de Sara Marriot e que é um exemplo de trabalhar na co-criação inteligente com a natureza) andando pelo jardim. Não resisti e fui falar um instantinho com ela. Muita emoção.


Na verdade me encantei e me emocionei várias vezes com tamanha beleza, carinho e acolhimento de tudo e todos.







Há muito o que falar e vou voltar a esse lugar outras vezes à medida que for escrevendo. Por hora, é isso: uma certeza de que há muitas coisas boas acontecendo nesse mundo e a maneira como lidamos com as coisas e pessoas, com delicadeza e beleza pode sim transformar um mundo viciado em falsos valores, um mundo que já não nos conforta mais. Aprendi que podemos sim voltar para dentro e redescobrir toda ternura que temos dentro e espalhar isso para esse novo mundo que está surgindo com tanta intensidade.