Dentro de mim existe um lugar onde vivo inteiramente só
e é lá que se renovam as nascentes que nunca secam.
P.Buch

10 de abril de 2016

FORMAS

Tantas são as filosofias, religiões, teorias e terapias sobre a espiritualidade e sobre o autoconhecimento que às vezes me pergunto o que é mesmo esse tal de autoconhecimento. Quem é esse eu que quero descobrir e quem é esse eu que pergunta isso? Tento elaborar isso sozinha no meu momento de quietude e de inquietação como se fosse um laboratório da minha convivência, com o mundo sem as pessoas. Mas o processo para eu entender a resposta exige outras pessoas, outras situações. E são nessas situações em que vivemos que existe um conjunto de coisas que precisamos passar para crescer. Todas as pessoas envolvidas fazem parte desse ritual de crescimento. Não há processo de autoconhecimento como algo independente da vida de uma pessoa.

Ultimamente tenho tido experiência com crianças e isso me faz pensar em tantas possibilidades metafóricas. Gosto de ver o tamanho das mãozinhas e pezinhos e boquinhas. Até mesmo quando eu olho meu retrato branco e preto de criança, me ponho a pensar: como assim eu cabia todinha nesse corpinho, com essas mãozinhas e pezinhos? E brincar com elas de “Peekaboo – I see you!” me faz pensar em tantas coisas...

Pensar que todos nós, as pessoas de todas as idades, que admiramos ou não, já tivemos algum dia aquele corpinho frágil, dependente e ao mesmo tempo tão cheio de sementes de vida pura por viver. Tudo por ser construído, tudo por ser explorado com uma alegria genuína, autêntica. Ali naquele corpinho está toda potencialidade física, trazendo já com ele todas as tendências emocionais, sensoriais e espirituais.  É incrível. Muito incrível mesmo.

Só pensar isso já traz um silêncio longo... mas vamos continuar esse post.

Esse corpinho vai durar alguns meses e outro corpinho aparecerá e depois outro mais crescido e mais outro.  Eu já mudei de corpos umas tantas vezes nesses quase 60 anos. Já mudei de conceitos, de ideias, de amores e de dores. Já mudei de desejos, de vontades. Já mudei de tamanho e de pele e de hormônios. E ainda assim eu continuo a ser eu mesma. Ops! Mas ao mesmo tempo eu já não sou a mesma de 30 anos atrás, 20 anos atrás, 5 anos... já não sou a mesma de ontem na hora do café da manhã.  E ainda assim continuo sendo eu mesma. É incrível. Muito incrível.

Quem é esse eu que não muda nunca?

Quando olho agora daqui da sala para minha mãezinha de 94 anos deitadinha lá na cama, lembro de todas essas formas diferentes que ela já vivenciou. Mesmo agora na forma frágil e esquecida das coisas e das histórias que vão se perdendo, ela continua lá sendo ela mesma desde o primeiro dia, desde sua primeira inspiração se estabelecendo nessa existência.

Da mesma forma que o bebê guarda nele toda a semente que irá desabrochar, minha mãe guarda nela a beleza da semente manifesta e a semente que tomará outras formas e ainda assim ela estará lá. 

Olho agora a foto de meu pai perto do relógio cujos ponteiros rodam, rodam, rodam naquele tic-tac quase ensurdecedor. Meu pai não tem mais todas aquelas formas que eu conheci desde que eu nasci. Mas sabe o quê? Ele também continua lá existindo naquela nova forma, descobrindo mais uma possibilidade de existência.

Olho agora para meu corpo e a semente vive em mim também mudando de formas tão rapidamente que, às vezes, me surpreendo com tantas nuanças de cores e texturas e flexibilidades e clareza mental e emocional.

A gente vai largando as formas como as borboletas fazem ao largar os casulos. A gente vai largando nossas crenças, nossas vontades de  estar certa, de ser perfeita, nosso autoritarismo. Vamos largando a nossa vontade de que as coisas sejam como achamos ser o certo. Vamos largando pessoas, amigos, nosso egoísmo, nossa tristeza, nossas verdades, nossas opiniões sobre tudo. Largamos nossos livros, nossos cds, nossas roupas. Vamos largando nossos julgamentos, nossas tolices. Largamos até mesmo nosso corpo. Nos desfazemos da nossa opinião sobre nós mesmos, de uma visão de nós mesmos de limitação. E corre a vida nos tic-tacs dos ponteiros do relógio nos dando todas essas infinitas possibilidade de se desfazer...

De verdade mesmo existe só um silêncio entre uma forma e outra. E é nesse silêncio que estou mergulhada nesse momento. Tic-tac, tic-tac.  As formas todas saem desse silêncio que abraça o bebê, que abraça a minha mãe, que abraça o meu pai e que abraça a mim mesma.

Lembro-me nas minhas brigas com Deus quando eu pedia uma resposta e não havia resposta  alguma. Um dia lembro-me de sair na sacada de madrugada, angustiada, me sentindo numa escuridão e lá embaixo na rua os carros não passavam, as árvores balançando na brisa e eu lá querendo uma resposta que nunca chegava. Decidi então que já que tudo lá fora era silêncio e que resposta nenhuma vinha, apesar de ter pedido tanto, então eu também ficaria em silêncio e pronto. E fiquei...  Não queria mais saber dessa história de pedir respostas... Entrei naquele silêncio e senti algo tão inexplicável...  e entendi, que se existisse mesmo um Deus, ele era esse silêncio. E isso preenchia e desmanchava todas as formas e esse silêncio era tudo. Tudo a minha volta era preenchido desse silêncio.

Minha mãe acordou e agora ela olha nossas fotos quando crianças por intermináveis minutos, fazendo perguntas como se fosse a primeira vez que estivesse olhando para aquelas formas diferentes de nós mesmos. Olha e pergunta, olha e pergunta, olha e pergunta...  Tic-tac, tic-tac...  E ela, que sabia de todas nossas histórias da família, adquire uma nova forma nos ensinando que apesar da forma, apesar do papel que estamos representando, estamos sempre lá. Esse eu que não morre nunca e que não muda, esse é o “eu” que estou interessada em conhecer. O autoconhecimento só pode ser desse “eu” que não muda nunca independente da forma.

A pessoa que era antes precisa crescer no entendimento da outra nova pessoa que, na verdade, ela sempre foi, mas não sabia. Assim, o autoconhecimento não é algo progressivo do tipo vou crescendo, vou crescendo até me tornar uma outra pessoa. Não, pois eu já sou esta pessoa. Se eu me considero algo que não sou, então o processo de crescimento é o processo de “se desfazer”. Eu vou me desfazendo da conclusão errada da pessoa que eu acho que sou para me tornar a pessoa que eu realmente sou.

Peekaboo! I see you!



27 de março de 2016

RELACIONAMENTO E LIBERDADE

Daqui desse lugar, vou olhando as montanhas e minha mente vai passando por tantas cenas cotidianas e brotando um mar de sensações e sentimentos.  Crianças de minhas alunas nascendo, nossas mães arrumando a malinha para viajar para outras experiências, casais amigos se separando, se descobrindo, alunos chorando, o dinheiro acabando, pessoas casando, outras se mudando para outro pais, outra cidade... Tantas cenas, tantos eventos... Mas quer saber?  Está tudo certo.

Como nada é coincidência, ouvir hoje a aula do Jonas (professor de Vedanta) foi como resumir tudo isso num entendimento maior de como funcionamos, de como o mundo funciona. Abaixo coloco as anotações que faço ao ouvi-lo.

O entendimento do objetivo humano é algo extremamente importante porque todo mundo, à medida que vai vivendo, tem questionamentos do tipo “qual é a minha missão? Para onde eu vou? O que eu vou fazer? Me sinto perdido, será que estou fazendo o que deveria estar fazendo? Não queria estar trabalhando com isso e sim com algo realmente relevante. Eu me sinto sozinho, as pessoas não sabem o que eu sinto, o que eu vivo. Eu não tenho amigos” etc.

Há 2 tipos de amigos que são legítimos:
1) aquele que está no mesmo vagão de trem. Enquanto estamos lá, existe uma troca, mas quando você desce desse vagão e vai para outra direção, os amigos desaparecem. Isso acontece até mesmo dentro de uma família, quando eles entram em vagões diferentes, mas nem sempre a amizade continua.
2) aquele que está fora do vagão que você está, mas que existe uma conexão por uma força muito mais profunda do que uma convivência.

Normalmente as pessoas se conectam pela convivência  e acabam sendo muletas umas das outras. Eu preciso ser capaz de curtir a felicidade do meu amigo dentro da felicidade dele e curtir a tristeza do meu amigo dentro da tristeza dele. Se não sentimos prazer em escutar a vida de uma pessoa que está triste, essa pessoa nunca vai sentir que você é amigo dela.  Ficamos triste também junto com a tristeza da outra pessoa, mas ao mesmo tempo estamos colaborando para a vida dela, participando de um momento íntimo. Se eu sou capaz de compartilhar dessas alegrias e tristezas, então eu tenho uma conexão, uma amizade. Isso é algo muito raro.

O que acontece é que às vezes a pessoa sai do vagão em que você está  e aí você acha que a pessoa brigou contigo e que não gosta mais de você – na verdade,  ela só está andando em outra direção.  Mas dentro de nossa mente criamos realidades sobre as  pessoas: “Ela me traiu”.  Não, ela não te traiu. Ela só está vivendo a vida dela, e na vida dela, você não é o centro das atenções – é ela. Na sua vida, o centro da atenção é você. Ninguém trai ninguém. Tudo está dentro das cabeças das pessoas.  Primeiro que para você ser traído, você tem que estar com a relação torta, ou seja, você está ali com uma pessoa que não quer estar com você e você está forçando a barra. Você lê os sinais.

Como se resolve uma traição? Você tem que pedir 2 perdões:  1) perdoar a pessoa por ter feito o que fez 2) se perdoar por ter deixado ela fazer o que fez com você. Você não pode achar que a culpa é dela. É o desejo dela, o egoísmo dela,  a necessidade dela de ser feliz, e você não é prioridade, assim como ninguém é prioridade na vida de ninguém.

A base de um relacionamento é a liberdade. Se eu dou liberdade para a outra pessoa que está comigo de ser ela mesma, como ela pode me trair? Quando? Se ela não quer ficar comigo, se ela se interessou por outra pessoa. Aí ela te traiu? Ela não te traiu. Você é que traiu um conceito que você tem em sua mente de que ela iria ficar com você para sempre e que nunca mais se interessaria por mais ninguém.  O estabelecimento dessa ideia é a fonte de sofrimento. Ninguém de verdade tem a capacidade de magoar ninguém. Só nos sentimos magoadas quando dentro de nossa mente está estabelecida uma espécie de fantasia a respeito da realidade e pouca liberdade.  Se há a liberdade você pode perguntar pra outra pessoa se ela quer ficar com você ou com a outra pessoa. Aí você se posiciona.  Dentro de um relacionamento com liberdade a pessoa vai descobrindo a outra porque ela também  está se descobrindo.
O conceito de fim de relacionamento não existe se há liberdade. A verdade é que toda vez que eu estabeleço relacionamento de qualquer tipo mas eu não estabeleço a liberdade das pessoas, o relacionamento está condenado.

A minha relação com cada um não pode ser estabelecida por um ideal de como eu acho que as coisas deveriam ser, mas para uma realidade de que as pessoas querem viver, das responsabilidades dela, dos compromissos dela. Se a liberdade está estabelecida na base dos relacionamentos, então ninguém trai ninguém.

O deslocamento emocional é o sintoma desse mal que a gente vê no mundo.  Às vezes as emoções são tão fortes que mesmo a pessoa entendendo o que sente, a mente volta no padrão anterior. A nossa mente tem por trás dela, uma espécie de funcionamento paralelo. As nossas emoções, nosso ciclo emocional não estão vinculados com o mundo do lado de fora.

As emoções só pegam do cardápio de opções de coisas do mundo o que elas quiserem apresentar hoje.
O que estou sentido, raiva, ansiedade, depressão, é só meu.  E uma vez que entendo que isso não pertence a ninguém, tendo a isolar as pessoas disso tentando resolver o problema sozinha, mas esse problema não será resolvido dessa maneira como imaginávamos.

Não vamos “evoluir espiritualmente” (e aí cabe estudar o que é evoluir espiritualmente) e acabar com a nossa raiva, ódio, medo, etc.  Esses sentimentos todos são a sua criança interior que você carrega em você. Existe uma configuração de emoções e comportamentos e ela nunca mudou e nunca vai mudar depois de qualquer meditação. Ela, a criança, não vai embora.  Ela fica lá esperando uma oportunidade de sair. Às vezes em terapia (instrumento importantíssimo) conseguimos identificar, analisar e aí tiramos aquela carga, o excesso, mas a base dos sentimentos continua ali.

As emoções não têm nada a ver com a nossa felicidade e é aí que está a chave da questão. Ou eu entendo isso e parto para uma outra solução, ou eu fico preso, tentando destruir o mal no mundo e me convencer que eu sou o problema e me chicoteio para resolver isso. Na verdade a solução não é a destruição de suas emoções ou a aniquilação de sua personalidade. Pra dizer a verdade não tem nada de errado em ter essas emoções. Todas as “desgraças” aparentes que aconteceram nas nossas vidas construíram o que somos hoje. O conceito de “mal” tem que ser desconstruído de nossa mente.  O universo o tempo todo coloca obstáculos, tira obstáculos.  Esses conceitos de que Deus premia uns e castiga outros, de que há pessoas, lugares especiais ou não especiais, tudo isso atrapalha uma mente sóbria de pensar sobre o mundo.

Nesse entendimento nosso coração fica em paz porque tudo está dentro de um plano. Não tem motivo para insegurança. Se você se coloca como você se sente, a outra pessoa também faz o mesmo. Só precisa estar preparadas para ouvir. E é nessa troca que existe uma oportunidade de crescimento.  A mãe perfeita não reside nas atitudes que ela tem de tomar, porque as atitudes estão sempre misturadas com ignorância e traumas. A mãe perfeita reside no amor constante que ela sentiu desde o primeiro momento que estava com a filha até mesmo quando essa filha fez algo que ela desaprovou ou quando vibrou por ela ter acertado. Esse amor é da mãe perfeita. Não é a pessoa. Essa pessoa  que está ali nunca vai ser perfeita. Esse sentimento é a mãe perfeita. Viver a vida tentando consertar a filha ou o outro é um estresse, pois nunca vamos conseguir consertar ninguém.  Todos têm seu tempo.

As pessoas nascem separadas. Enquanto o universo permite, ótimo, quando não, temos que saber dar adeus. Então precisamos começar a dar adeus antes. Você constrói esse adeus na liberdade durante todo o relacionamento.  Você constrói o “bem vindo” e você constrói também o adeus.