Dentro de mim existe um lugar onde vivo inteiramente só
e é lá que se renovam as nascentes que nunca secam.
P.Buch

9 de março de 2011

Relacionar

O livro de Elizabeth Gilbert, “A Comprometida”, fala sobre a instituição casamento, e basicamente sobre relacionamentos. E diz que, depois de um tempo em que homens e mulheres vivem juntos, começam a conhecer não só as falhas um do outro, mas também o que é digno de respeito e admiração do outro. Com muita lucidez sugere que “talvez criar um espaço dentro da consciência grande o bastante para guardar e aceitar as contradições de alguém, seja um ato divino. Talvez a transcendência não se encontre só nos picos solitários das montanhas ou nos ambientes monásticos, mas também na mesa da cozinha, na aceitação cotidiana do parceiro. Não falo em aprender a aguentar o que não presta, falo em aprender a adaptar a vida da maneira mais generosa possível em torno de um ser humano basicamente decente que às vezes podem ser insuportável. Quanto a isso, a cozinha pode ser um templinho azulejado aonde vamos praticando diariamente o perdão como nós mesmos gostaríamos de ser perdoados.”

É verdade que relacionar-se com o outro é um processo de aprendizagem constante e também uma forma de se desenvolver e se autoconhecer, desde que sejamos honestos com nós mesmos, não achando que relacionamentos são aqueles vistos nas novelas de TV. Saber que o outro é um ser humano diferente de mim e aceitar isso já faz grande diferença em como vou me relacionar.

Ainda nesse livro, ela descreve lindamente sua aceitação com o diferente. Diz ela: “... há diferenças simples entre mim e Felipe que ambos temos que aceitar. Posso garantir que ele jamais fará uma aula de ioga comigo, por mais que eu tente convencê-lo de que ele adoraria. (Ele não adoraria mesmo). Nunca meditaremos juntos num retiro espiritual de fim de semana. Nunca conseguirei que ele coma menos carne vermelha. Jamais farei com que controle seu mau humor. Não vamos passear de mãos dadas pela feira... de modo que esse imenso prazer meu continuará a ser um prazer particular. Do mesmo modo, há prazeres na vida dele que jamais serão meus. Nunca tivemos filhos, por isso Felipe não pode ficar horas a fio conversando com a parceira sobre seus filhos Zo e Erica quando eram pequenos, como talvez fizesse se o casamento com a mãe deles tivesse durado 30 anos. Ele adora bons vinhos, mas me servir vinho bom seria um desperdício. Algumas dessas diferenças são importantes outras nem tantos, mas todas inalteráveis. No final das contas parece que o perdão talvez seja o único antídoto realista que o amor nos oferece para combater as decepções inevitáveis da intimidade.
Há momentos em que quase consigo ver o espaço que me separa de Felipe, e que sempre nos separará, apesar do meu anseio vitalício de me complementar pelo amor de alguém, apesar do meu esforço, no decorrer dos anos, para encontrar alguém que seja perfeito para mim e que, por sua vez, faça com que eu torne um tipo aperfeiçoado. Em vez disso, as nossas dessemelhanças e defeitos estarão sempre entre nós.
É difícil que haja um presente mais generoso que se possa dar a alguém do que aceitar a pessoa por inteiro, amá-la quase apesar dela.

O relacionamento é uma eterna possibilidade de ver espelhado no outro aquilo que gosto e o que não gosto em mim mesma e, com coragem, contestar nossas crenças e paradigmas arraigados e que estão lá confortavelmente estabelecidos. Não se trata de negá-los ou evitá-los, mas trata-se de investir em relacionamentos de qualidade capazes de enfrentar a verdade sobre nós mesmos. Ao relacionarmos, entramos em contato com sentimentos novos que são só nossos e temos que aprender a lidar com eles. Às vezes caímos na armadilha de achar que o outro é responsável pela nossa paz interna, nossa felicidade e nossa alegria. Não é. O outro tem seu próprio processo, seu próprio ritmo de processar o sentimento e suas crenças limitantes. Esperar que o outro aja, sinta e pense exatamente como nós é querer algo que foge do natural.

Jung diz que todo relacionamento é 50% de responsabilidade para cada uma das partes. Um relacionamento, na verdade, é resultado do que as partes colocam nele.

Então, me parece que aceitar (e claro não falo aqui de aceitar agressão, violência, etc.) o outro como um ser integral e único é o caminho para assumir minha parte de responsabilidade na relação gerando um crescimento individual para as pessoas envolvidas.


Änïmä
Milton Nascimento

Lapidar
Minha procura toda
trama lapidar
o que o coração
com toda inspiração
achou de nomear
gritando: alma
Recriar
cada momento belo já vivido
e ir mais
atravessar fronteiras do amanhecer
e ao entardecer
olhar com calma
então

Alma, vai além de tudo
o que o nosso mundo ousa perceber
casa cheia de coragem, vida
tira a mancha que há no meu ser
te quero ver
te quero ser
alma

Viajar nessa procura toda
de me lapidar
neste momento agora de me recriar
de me gratificar
de busto, alma, eu sei
casa aberta
onde mora o mestre, o mago da luz
onde se encontra o templo que inventa a cor
Animará o amor
Onde se esquece a paz

Alma, vai além de tudo
o que o nosso mundo ousa perceber
casa cheia de coragem, vida
todo o afeto que há no meu ser
te quero ver, te quero ser
alma

3 comentários:

  1. Quando ela fala de transcendência na mesa da cozinha senti roubado meu pensamento: no dia a dia, um dos meus momentos mais importantes é quando nos sentamos tête a tête eu e minha mulher, no final do dia. Lá no silêncio da cozinha, sinto como se não houvesse nada além daquele instante. Sem palavras a serem ditas, a energia está lá nos envolvendo e solidificando nosso relacionamento. Perdi a conta de quantas vezes evitei dizer algo que magoaria por lembrar dos meus próprios defeitos e, em menor número, das vezes em que me perdoei por estes mesmos defeitos. A cozinha é mágica...
    Leopoldo

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  2. Ola querida!
    Como está?
    Amei mais uma vez! Esta aceitação é fundamental.....
    Não imaginava que este livro pudesse ser tão interessante!
    Nos vemos no sábado?
    Beijo
    Angela

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  3. Ah. Leopoldo que belo seu comentário!
    Também senti roubado meu pensamamento várias vezes lendo esse livro. A pequena parte que coloquei no livro se refere em muito a minha vida. É bom saber que vários casais vivem um relacionamento maduro de dar e receber.
    Obrigada
    Zezé

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